Numa rua qualquer de Lisboa o senhor perdido ia tacteando os grãos de tinta da parede. Com as calças feitas num farrapo, os sapatos com um furo em cada dedão, e os atacadores com dois centímetros de comprimento avançava lento sentindo as pedras da calçada na sola dos pés.
Perdera-se faz muito tempo entre os labirintos infinitos da sua mente, enquanto tentava encontrar lógica na morte.
Trazia sempre como que um animal de estimação, amarrado na cintura, o seu carrinho de compras que um dia roubara numa cadeia de mercado moribunda. Dentro do carro tinha toda a sua vida, um album de recordações onde guardava, com todas as suas forças, as lembranças da sua infância e do que outrora chamou de família. Os seus três filhos, a sua falecida mulher e todos aqueles momentos em que se lhe pôde ver um sorriso no canto dos lábios.
Trazia também, um estimado colchão, uma almofada feita de farrapos que por vezes usava para se lavar, e a telefonia que já não tocava faz dez anos, e se mantinha sintonizada na estação onde todos os dias ouvia as canções que o embalavam no pequeno almoço.
O carro já ia na sua quarta revisão, cada uma requeria troca integral de rolamentos, desempanamento do eixo da frente e um novo estofo para o volante.
As suas pernas já não eram como d'antes e por vezes deixava-se dormir, debaixo de uma ombreira de porta ou de um parapeito de escada, até ter genica para se pôr de pé.
O ritual das manhãs era sempre o mesmo, dobrar o colchão e a almofada juntos, retirar o garrafão, que utilizava para lavar as mãos e a cara, do carro e prende-lo entre os joelhos enquanto entornava a água nas mãos em forma de concha e as levava, com delicadeza, às faces, retirar um pedaço de pão do saco, com alguma sorte um iogurte que conseguira no dia anterior, e levar à boca para enganar a fome, repor todos os items meticulosamente no carro e lançar-se na aventura da imensa Lisboa.
Tinha um trabalho sujo, que lhe ocupava maior parte do dia, encontrar e recolher corações partidos das ruas da cidade, trabalho que fazia com gosto e apresso, nunca se negando, ainda que por vezes o corpo o não deixasse, a baixar-se e esgueirar o braço para dentro de uma sarjeta onde a maior parte dos cacos iam parar. Normalmente encontrava-os sozinhos, partidos ou arrancados por uma das partes, alguns até com buracos ou espicaçados, por vezes conseguia encontra-los aos pares, mas era raro, mais raro era encontrar as duas metades do mesmo coração no mesmo dia, acontecera-lhe uma vez.
Por habito recolhia-os para dentro de um saco de serapilheira, que atava no fim do dia com uma corda. No dia seguinte, logo pela alvorada, transportava-os para o "Centro de recuperação de corações partidos" onde os deixava ao cuidado de uma amiga que conhecera no dia em que tentou encontrar a logica na morte.
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