quarta-feira, 29 de junho de 2011

Calista belisário

Numa rua qualquer de Lisboa o senhor perdido ia tacteando os grãos de tinta da parede. Com as calças feitas num farrapo, os sapatos com um furo em cada dedão, e os atacadores com dois centímetros de comprimento avançava lento sentindo as pedras da calçada na sola dos pés.
Perdera-se faz muito tempo entre os labirintos infinitos da sua mente, enquanto tentava encontrar lógica na morte.
Trazia sempre como que um animal de estimação, amarrado na cintura, o seu carrinho de compras que um dia roubara numa cadeia de mercado moribunda. Dentro do carro tinha toda a sua vida, um album de recordações onde guardava, com todas as suas forças, as lembranças da sua infância e do que outrora chamou de família. Os seus três filhos, a sua falecida mulher e todos aqueles momentos em que se lhe pôde ver um sorriso no canto dos lábios.
Trazia também, um estimado colchão, uma almofada feita de farrapos que por vezes usava para se lavar, e a telefonia que já não tocava faz dez anos, e se mantinha sintonizada na estação onde todos os dias ouvia as canções que o embalavam no pequeno almoço.
O carro já ia na sua quarta revisão, cada uma requeria troca integral de rolamentos, desempanamento do eixo da frente e um novo estofo para o volante.
As suas pernas já não eram como d'antes e por vezes deixava-se dormir, debaixo de uma ombreira de porta ou de um parapeito de escada, até ter genica para se pôr de pé.
O ritual das manhãs era sempre o mesmo, dobrar o colchão e a almofada juntos, retirar o garrafão, que utilizava para lavar as mãos e a cara, do carro e prende-lo entre os joelhos enquanto entornava a água nas mãos em forma de concha e as levava, com delicadeza, às faces, retirar um pedaço de pão do saco, com alguma sorte um iogurte que conseguira no dia anterior, e levar à boca para enganar a fome, repor todos os items meticulosamente no carro e lançar-se na aventura da imensa Lisboa.
Tinha um trabalho sujo, que lhe ocupava maior parte do dia, encontrar e recolher corações partidos das ruas da cidade, trabalho que fazia com gosto e apresso, nunca se negando, ainda que por vezes o corpo o não deixasse, a baixar-se e esgueirar o braço para dentro de uma sarjeta onde a maior parte dos cacos iam parar. Normalmente encontrava-os sozinhos, partidos ou arrancados por uma das partes, alguns até com buracos ou espicaçados, por vezes conseguia encontra-los aos pares, mas era raro, mais raro era encontrar as duas metades do mesmo coração no mesmo dia, acontecera-lhe uma vez.
Por habito recolhia-os para dentro de um saco de serapilheira, que atava no fim do dia com uma corda. No dia seguinte, logo pela alvorada, transportava-os para o "Centro de recuperação de corações partidos" onde os deixava ao cuidado de uma amiga que conhecera no dia em que tentou encontrar a logica na morte.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Nas asas d'uma mosca

Nunca conseguia manter nada organizado na sua cabeça e perdia-se varias vezes durante o dia no zumbir tosco de uma mosca. A sua casa era meticulosamente arrumada por uma empregada de limpeza à qual ele pagava com favores carnais, ela não se importava, e ele aprendera a usar-se como moeda de troca desde miúdo. No trabalho mantinha toneladas de folhas espalhadas pela secretária rodeando a maquina de escrever que disparava letras com precisão milimétrica contra o papel arremessando-o contra a parede. Não usava virgulas e os pontos finais eram escassos pois nunca sabia como acabar um texto. Quem lesse as suas paginas dava em louco ao tentar organizar as frases soltas e sem nexo, que só se compreendiam aquando de uma transfusão de cerebro. Na boate ora pedia scotch, ora bebia uma cerveja sem álcool, como de seguida vazava um bagaço velho. Nunca aprendera a fazer listas, faltou a essa classe, ou melhor na escola estar nas aulas era o mesmo que escrever nas mesas e não prestar atenção ao que era dito. Um dia perdeu-se na sua propria cidade e, sem saber onde estava, deambulou até à exaustão. Até hoje não encontrou o caminho para casa, e vai errando, perdido entre as distracções do dia-a-dia. Não sabe o proprio nome, pois perdeu a atenção nos dos outros, da sua cara já não se lembra pois um reflexo é uma dimensão paralela e indefinida, perdeu a carteira, e a noção do tempo baralha-se com o brilhar da lua e o sol.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Cuspir em frente

Num daqueles dias em que a chuva forçava demasiado a barricada, a barragem deu de si de encontro aos dentes dos menos providos. Com sorte alguns souberam quando saltar do barco, e viveram para contar a historia. Os outros, bem os outros perderam-se entre as farpas afiadas da madeira, os pedregulhos do betão e os pedaços de corpos.
Quando chove assim deve-se sair à rua com a armadura de ferro, ainda assim com cuidado para não enferrujar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Imaginarium I

Era uma vez um menino, que como todos os meninos, era pequenino.
Certo dia enquanto brincava com os bonecos velhos e viciados da sua infância deparou-se sentado a olhar para o outro lado da grande vedação do seu jardim. Do outro lado haviam muitos outros meninos e meninas, que brincavam a jogos de imaginar, sem bonecos, nem carros, nem caminhos viciados, e então deu por si a pensar.
"Porque é que aqueles palermas estão a brincar com as mãos no ar, aos saltos e aos pulos, sem brinquedos de verdade?" não percebia.
Voltou-se a brincar com os seus brinquedos de brincar, no mesmo girar e girar.
Numa outra altura veio a embater, na sua vedação, um dos meninos, e ele apressou-se a perguntar.
"Porque é que estão a brincar sem brinquedos de verdade?"
"Isto são brinquedos de verdade, ora essa!" respondeu o outro.
"Se são de verdade porque é que eu não os consigo ver?"
"Tens de semi serrar os olhos, e pensar com muita força, para isso acontecer."
O menino pequenino não percebeu nada do que o outro lhe tinha dito, ainda assim abanou com a cabeça.
No dia seguinte, na hora de brincar, juntou a cara à vedação e olhou para os outros meninos a imaginar, cerrou os olhos com muita força que quase não via nada, e não viu mesmo nada. Chateou-se e foi brincar, com os seus brinquedos de verdade.
À noite não conseguiu dormir a pensar com muita força.
No dia seguinte, depois de estudar, foi para o jardim tentar brincar mas não conseguiu, os bonecos estavam a ficar velhos e já não faziam nada de novo, seguiam sempre no mesmo caminho.
Aborrecido sentou-se junto da cerca a ver os outros meninos a fazer o jogo de imaginar.
"Que tolos" pensou ele.
"Como é que conseguem ver com o que é que estão a brincar se não têm nada nas mãos?"
Então, irritado, cerrou de novo os olhos com muita muita força e começou a pensar. Subitamente como que por magia pareceu-lhe ver uma imaginação, e abriu a boca incredulo. Mas no momento seguinte desapareceu.
"Acabou o tempo, volta pra dentro" Ordenaram-lhe, e ele com muita pouca vontade lá foi.
Passou os seguintes três dias enfiado com a cara na vedação, olhos semi cerrados e a pensar com toda a sua força, até conseguir ver com toda a certeza as imaginações dos outros meninos.
Foi então que pensou imaginar brinquedos como os deles, para poder brincar no seu parque de verdade.
Cerrou os olhos e pensou. Nada. Cerrou com mais força e pensou ainda mais. Nada. Não se deixou vencer e fechou ainda mais os olhos e pensou ainda com mais firmeza. Mas não viu nada.
"Porque é que não consigo brincar com brinquedos de imaginar?" pensou com uma tremenda frustração.
Então realizou que, provavelmente, seria por não ter com quem imaginar.
...