quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Perdia sempre a mesma coisa

Servia a noite toda e conhecia todas as texturas de todas as garrafas, podia até aceitar pedidos de olhos fechados. O espaço que o separava das bebidas e dos outros era pouco maior que um passo e, já os tinha dado a todos. Durante todo o espaço de tempo entre o entrar e o sair esperava ansiosamente por um único momento, entre esse momento e todos os restantes enchia copos e copos, juntava bebida com bebida e aturava os balbucios desajeitados pela pinga de meia dúzia. Amigos poucos tinha, os quais de quando em quando apareciam lançando abraços, gritos e foguetes para o ar, ele sorria, podia até oferecer-lhes um copo mas eles nunca tardavam em sair. Não ambicionara trabalhar ali, foi o acaso que lhe deitou as mãos e enfiou naquela noite, naquele sitio durante anos. O tal momento acontecia todos os dias durante as ultimas três semanas. Entre as duas e meia e as quatro os seus olhos não descolavam daquele vulto singular, estravagante e impertinente de cabelos curtos e encaracolados, e era quando se aproximava, depois de arrombar a porta com os punhos, do balcão que deixava de prestar atenção a tudo e todos os outros. Atirava os cotovelos por cima do mármore e pedia sempre o mesmo, sempre com a mesma pausa no olhar e na voz e aguardava sempre com o mesmo rasgado sorrir, nunca percebera se o sorriso vinha na sua direcção, tal como nunca tivera coragem de lhe perguntar o nome, mas, pintava-o na sua cabeça a tinta da china.
Quando se soltava descia de encontro a casa por meio escombros, garrafas partidas, corpos aos caídos, e nunca, nunca se cruzava com aquela silhueta.

Loop

"Nem por isso..." destronou assim a conversa.

Tinham sido duas crianças, e tinham crescido e deixado de ser duas crianças para passarem a ser uma criança grande. Ele era baixo, ela era alta, ele gordo, ela esguia, os olhos dele eram verdes, os dela castanhos, as feições dele eram brutas, ela tinha feições de princesa da disney, o humor dele mudava com o tempo, ela tinha humor sólido, ele gostava de levar, ela gostava de lhe bater, ele nunca chorara, ela ensopava a almofada todas as noites, ele queria ser outra pessoa, ela queria que ele fosse outra pessoa, depois do banho ele secava-se ao vento, ela usava toalha, ele nunca bebeu nem fumou, ela era viciada em tabaco e embebedava-se sempre que podia, os amigos dele não eram amigos dela, os amigos dela não queriam ser amigos dele, quando ele se vinha gritava foda-se, quando ela se vinha arrancava-lhe pele das costas, ele gostava de ser mais novo, ela parecia sempre mais nova, ele nunca falou, ela calava-se.

"Gostas de mim?" perguntou-lhe

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Dispensa

She was holding herself down in a horizontal position, the wind laid his soft hands against her hair shoving it into the voidless air. Her hands, tied to those brick ropes she held on for so long it grew the green smell of moss, were reddish as a dying rose. The thin, white and cold feet, stepped upon the buildings side, feeling the thick windows of someones glass, were mistreated as a rubbish waste. She couldn't let go.

Solta-te menina, larga as amarras que te agarram à fachada velha dessa casa, dela só restam ruinas. Larga à confiança dos meus braços, e deixa-te cair dai de cima. Manda fora a esperança de desconstrução passiva dessa moradia antiga, ele não volta para reacender com uma pinha a lareira caiada. Atira-te dentro de mim, para dentro de mim e desiste dessa altura espevitada e da postura altiva e majestosa. Ele sabe.
Sobe e desenlaça as cordas que prendeste ao topo da chaminé, vem para minha casa enlaça-as no regaço quente. De lá não saias até que o teu corpo recupere das pancadas que te deram de borla. Sem que pedisses foram-se ajuntando nódoas negras à volta dos teus braços, dos teus punhos, e sem que visses foram-se enrolando punhos em volta do teu pescoço que te abafaram o respirar. Tu sabes.
Dentro da quente manta, e da luz apagada, junta-te comigo e procura o brilho no novo céu, encontra constelações sem sentido e significa-as. Mostra-me o que não sei para que lhe entorne o olhar e descanse o queixo. Leva-me e lava-me, seca-me no manto da tua pele e enxota-me as moscas e as traças de cima. Eu sei.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Conto de Maria I

Era tão efémero quanto o escassear das horas, o entrar no bar e, depois de quatro copos de scotch, encontrar alguém com quem passar o resto da noite. Ainda que isso não significasse o final previsível no fundo dos lençóis, sabia-lhe bem saborear uma boca nova todos os serões. Estudava as mulheres como quem estuda para um exame de final de curso, e conhecia os cantos e recantos dessa bela disciplina. Nunca assaltava o mesmo castelo na mesma semana, e tinha um mapa muito bem estudado, com as fraquezas de cada fortaleza dentro da sua cabeça. Saía sempre antes de se tornar irremediavelmente importante nas suas vidas, e tinha-se como santo redentor de corações acabados. Nunca se deixara envolver o suficiente para que se lhes pudesse chamar amor. Mas tratava-as todas com o mesmo respeito e delicadeza tal jardineiro velho num jardim de rebentos novos.

Maria aconteceu depois, bem depois. Estava já ele agarrado aos seus raros cabelos negros como alcatrão, e os sapatos gastos de tanta dança. Maria, singular, estonteante, de labios carnudos e doces num eterno tom avermelhado, pernas majestosamente altivas de atleta olimpica e silhueta perfeitamente recortada a bisturi cirúrgico, apareceu num fim-de-semana que se escapa no tempo.
Sem avizar, e por entre as garfadas num bolo ao pequeno almoço, no hotel mais caro da cidade, os olhos dele choveram entre os ombros da delicada face de Maria. Naquele preciso instante ele realizou que a tinha que vencer. Era a mulher mais bela que alguma vez tivera visto, as suas bochechas arrebitadas embalavam o bolo num bailar de cisnes, os seus dentes quase sem se fechar tocavam-se solenes como os grãos de areia na praia, o queixo com uma ligeira cova no meio fazia-lhe lembrar as dunas d'um deserto distante, os seus cabelos encaracolavam-se lançando-se sobre os seus ombros quase que deitados a dormir, das pérolas que tinha como olhos caiam, intermitentemente, fugases e desinteressados contemples sobre a mesa. Nunca um ser se apoderara do seu fitar de tal forma, nunca se sentira aprisionado em coisa tão sublime, fria e terna. Tinha que lhe chegar.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Crestássemos

Brincavam com o fogo e dominam-no com uma destreza acutilante. De manhã a meio de um beijo deitavam no chão os trapos e ensopavam-nos em querosene, vestiam-se e saiam para as suas vidas. Ambos fumavam, ambos tinham isqueiros com que acender os cigarros e ambos passavam o dia a brincar com o fogo. Ele animava a praça a meio da tarde com as mais singulares danças de amor por entre linhas de livros e pedras da calçada. Ela por sua vez servia de cinzeiro a doentes alcoólicos, onde estes despejavam as cinzas do passado. Jogavam com fogo.

Por entremedio de falsos rituais chegava a hora em que se encontravam de novo e, sem grande importância, se acendiam mutuamente sentando-se numa explanada de café. Enquanto ardiam por fora, o miolo, frio, não tardava em arrefecer. Os olhos, fogo, as palavras, fogo, os suspiros, fogo, os dedos entrelaçados, fogo, a distância entre um roçar de palavras, fogo.
O fogo servia-lhes como o quente de uma lareira, uma labareda no mato seco, uma beata acesa num pulmão canceroso.

Brincavam.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Caixinha de suspiros

Era de noite e a pergunta ficou outra vez agarrada no fundo da caixa, ela olhava-o com aquele sorriso cúmplice à espera do convite, mas ele centrara-se mais uma vez numa tremenda divagação sobre o sentido das coisas em si.
Enquanto as melgas rodeavam, freneticamente, as lâmpadas na rua à procura de calor, eles iam descendo de mãos quase dadas em direcção ao cais, onde ele a iria ver partir pela terceira vez no espaço de dois meses. Era-lhe sempre difícil a aceitação de uma despedida, ainda que curta, por isso nunca sentiu a força suficiente para deitar aquelas cartas na mesa.
Nunca um livro levara tanto tempo a ser escrito como o dele, nunca uma musa vivera tão longe do seu pintor. O inverno tempestuoso aceitara treguas durante aquele dia e, como tal, decidiram que era altura de sair a correr para fora do ninho.
Por fim estavam já no cais rendidos e de armas baixas esperando que alguma coisa rebentasse em frente aos seus olhos e os cegasse de vez. O sorriso não lhe abandonaria de vez a cara até que ela estivesse dentro do barco, até lá a esperança do convite vivia. Ele ainda diletanteando em cima das palavras, mantinha um discurso fugidio e cauteloso que, pé-ante-pé, não tinha falha alguma.
Ouviram o gritar da campainha que abria as portas a mais uma viagem, e enquanto se namoriscavam com os olhos o tempo ia-lhes fugindo esgoto abaixo. Gostei de estar contigo, disse-lhe ela por entre um abraço terno. Acho que devia-mos repetir, lançou ele por entre os dentes. Foi um adeus solto no fim dos dedos.
Na sua cabeça repetidamente rugia a palavra: fica comigo.
Eram só palavras.
E ela nunca ficou.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Silhueta decotada

Sabes, foi no teu arquear de costas que nasceu o mundo, foram nessas linhas finas, que descem a tua cinta recordada, que escorregaram os meus dedos que nem lápis de carvão doce.
Foi sempre assim que se te desenhei as costas, com isso e com os pedaços soltos da minha saliva a escorrer-me a língua e que te cravaram os ossos à pele.
É quando a borracha teima em apagar esse desenho que se soltam infinitos foguetes a gritar por ti, pela tua face, pelo teu perfil decotado, pelos lisos centímetros da tua silhueta.
Sabes, nunca é na cama que morre o sonho, nem no fundo da garrafa, nem mesmo no fim da noite.
É no acordar.
Em ti.