quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Carolina I

Não havia dia em que não a quisesse ver, nem que fosse só pelo seu milenar sorriso. O calor dos dois corpos não se sincronizaria nunca, ele era frio quando ela era da temperatura do verão e, quando o verão lhe chegava, ela era branca como a neve. As suas bocas não se encontrariam nunca no mesmo momento, quando uma se abria a outra fechava-se mastigando palavras. Os seus olhos não se conheceriam nunca na mesma paisagem, quando uns vislumbravam Paris, o outro par voava solto sobre as dunas de um deserto qualquer. E ela só existia no tempo que ele lhe imprestara, que ele imaginara, no lugar onde se encontraram pela primeira vez.

Ela nunca o tinha visto fora daquele espaço, nunca lhe tinha sentido o cheiro para alem daquele dia, e sabia que se o abordasse ele não a conseguiria ver.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O barco

Procurava-a incessantemente todo o dia, mesmo sabendo que nunca poderia ser dele. Depois daquela noite tudo deixou de ser da forma que tinha sido. Finalmente perdera o medo, com a ajuda de meia dúzia de cervejas, e confiante, falou-lhe curioso por saber o motivo de tantos olhares perdidos no vão das escadas. Carolina, era assim que a chamavam, dissera-lhe ao ouvido. David, mas ela já sabia. Partilhou-lhe que ainda não sabia bem o que queria da vida, ele ainda que sabendo não lho podia dizer, por isso deixou-se ficar no mesmo barco que ela. Ele gostou da mistura entre os seus olhos verdes e os cabelos vermelhos, ela gostou da voz com que ele a agarrava. Nunca entraram em detalhes do que os levara áquele sítio, áquela hora, mas ficaram felizes por saber que hexistia um tempo para eles, ainda que incertos de um espaço. As horas avançavam por entre o som das musicas antigas daquele barco. Ele investia enquato ela recuava, depois ela investia e ele fazia-se difícil. A dança era ali, e o ali era uma desculpa, pois se fosse noutro lugar perdiam tudo o que tinham. Ele queria vêla todos os dias, e via, mas embora ela sorrisse ele nunca sabia se era na sua direcção.
Ela procurava-o incessantemente, mas tudo o que ele fazia era sorrir.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Calista belisário

Numa rua qualquer de Lisboa o senhor perdido ia tacteando os grãos de tinta da parede. Com as calças feitas num farrapo, os sapatos com um furo em cada dedão, e os atacadores com dois centímetros de comprimento avançava lento sentindo as pedras da calçada na sola dos pés.
Perdera-se faz muito tempo entre os labirintos infinitos da sua mente, enquanto tentava encontrar lógica na morte.
Trazia sempre como que um animal de estimação, amarrado na cintura, o seu carrinho de compras que um dia roubara numa cadeia de mercado moribunda. Dentro do carro tinha toda a sua vida, um album de recordações onde guardava, com todas as suas forças, as lembranças da sua infância e do que outrora chamou de família. Os seus três filhos, a sua falecida mulher e todos aqueles momentos em que se lhe pôde ver um sorriso no canto dos lábios.
Trazia também, um estimado colchão, uma almofada feita de farrapos que por vezes usava para se lavar, e a telefonia que já não tocava faz dez anos, e se mantinha sintonizada na estação onde todos os dias ouvia as canções que o embalavam no pequeno almoço.
O carro já ia na sua quarta revisão, cada uma requeria troca integral de rolamentos, desempanamento do eixo da frente e um novo estofo para o volante.
As suas pernas já não eram como d'antes e por vezes deixava-se dormir, debaixo de uma ombreira de porta ou de um parapeito de escada, até ter genica para se pôr de pé.
O ritual das manhãs era sempre o mesmo, dobrar o colchão e a almofada juntos, retirar o garrafão, que utilizava para lavar as mãos e a cara, do carro e prende-lo entre os joelhos enquanto entornava a água nas mãos em forma de concha e as levava, com delicadeza, às faces, retirar um pedaço de pão do saco, com alguma sorte um iogurte que conseguira no dia anterior, e levar à boca para enganar a fome, repor todos os items meticulosamente no carro e lançar-se na aventura da imensa Lisboa.
Tinha um trabalho sujo, que lhe ocupava maior parte do dia, encontrar e recolher corações partidos das ruas da cidade, trabalho que fazia com gosto e apresso, nunca se negando, ainda que por vezes o corpo o não deixasse, a baixar-se e esgueirar o braço para dentro de uma sarjeta onde a maior parte dos cacos iam parar. Normalmente encontrava-os sozinhos, partidos ou arrancados por uma das partes, alguns até com buracos ou espicaçados, por vezes conseguia encontra-los aos pares, mas era raro, mais raro era encontrar as duas metades do mesmo coração no mesmo dia, acontecera-lhe uma vez.
Por habito recolhia-os para dentro de um saco de serapilheira, que atava no fim do dia com uma corda. No dia seguinte, logo pela alvorada, transportava-os para o "Centro de recuperação de corações partidos" onde os deixava ao cuidado de uma amiga que conhecera no dia em que tentou encontrar a logica na morte.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Nas asas d'uma mosca

Nunca conseguia manter nada organizado na sua cabeça e perdia-se varias vezes durante o dia no zumbir tosco de uma mosca. A sua casa era meticulosamente arrumada por uma empregada de limpeza à qual ele pagava com favores carnais, ela não se importava, e ele aprendera a usar-se como moeda de troca desde miúdo. No trabalho mantinha toneladas de folhas espalhadas pela secretária rodeando a maquina de escrever que disparava letras com precisão milimétrica contra o papel arremessando-o contra a parede. Não usava virgulas e os pontos finais eram escassos pois nunca sabia como acabar um texto. Quem lesse as suas paginas dava em louco ao tentar organizar as frases soltas e sem nexo, que só se compreendiam aquando de uma transfusão de cerebro. Na boate ora pedia scotch, ora bebia uma cerveja sem álcool, como de seguida vazava um bagaço velho. Nunca aprendera a fazer listas, faltou a essa classe, ou melhor na escola estar nas aulas era o mesmo que escrever nas mesas e não prestar atenção ao que era dito. Um dia perdeu-se na sua propria cidade e, sem saber onde estava, deambulou até à exaustão. Até hoje não encontrou o caminho para casa, e vai errando, perdido entre as distracções do dia-a-dia. Não sabe o proprio nome, pois perdeu a atenção nos dos outros, da sua cara já não se lembra pois um reflexo é uma dimensão paralela e indefinida, perdeu a carteira, e a noção do tempo baralha-se com o brilhar da lua e o sol.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Cuspir em frente

Num daqueles dias em que a chuva forçava demasiado a barricada, a barragem deu de si de encontro aos dentes dos menos providos. Com sorte alguns souberam quando saltar do barco, e viveram para contar a historia. Os outros, bem os outros perderam-se entre as farpas afiadas da madeira, os pedregulhos do betão e os pedaços de corpos.
Quando chove assim deve-se sair à rua com a armadura de ferro, ainda assim com cuidado para não enferrujar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Imaginarium I

Era uma vez um menino, que como todos os meninos, era pequenino.
Certo dia enquanto brincava com os bonecos velhos e viciados da sua infância deparou-se sentado a olhar para o outro lado da grande vedação do seu jardim. Do outro lado haviam muitos outros meninos e meninas, que brincavam a jogos de imaginar, sem bonecos, nem carros, nem caminhos viciados, e então deu por si a pensar.
"Porque é que aqueles palermas estão a brincar com as mãos no ar, aos saltos e aos pulos, sem brinquedos de verdade?" não percebia.
Voltou-se a brincar com os seus brinquedos de brincar, no mesmo girar e girar.
Numa outra altura veio a embater, na sua vedação, um dos meninos, e ele apressou-se a perguntar.
"Porque é que estão a brincar sem brinquedos de verdade?"
"Isto são brinquedos de verdade, ora essa!" respondeu o outro.
"Se são de verdade porque é que eu não os consigo ver?"
"Tens de semi serrar os olhos, e pensar com muita força, para isso acontecer."
O menino pequenino não percebeu nada do que o outro lhe tinha dito, ainda assim abanou com a cabeça.
No dia seguinte, na hora de brincar, juntou a cara à vedação e olhou para os outros meninos a imaginar, cerrou os olhos com muita força que quase não via nada, e não viu mesmo nada. Chateou-se e foi brincar, com os seus brinquedos de verdade.
À noite não conseguiu dormir a pensar com muita força.
No dia seguinte, depois de estudar, foi para o jardim tentar brincar mas não conseguiu, os bonecos estavam a ficar velhos e já não faziam nada de novo, seguiam sempre no mesmo caminho.
Aborrecido sentou-se junto da cerca a ver os outros meninos a fazer o jogo de imaginar.
"Que tolos" pensou ele.
"Como é que conseguem ver com o que é que estão a brincar se não têm nada nas mãos?"
Então, irritado, cerrou de novo os olhos com muita muita força e começou a pensar. Subitamente como que por magia pareceu-lhe ver uma imaginação, e abriu a boca incredulo. Mas no momento seguinte desapareceu.
"Acabou o tempo, volta pra dentro" Ordenaram-lhe, e ele com muita pouca vontade lá foi.
Passou os seguintes três dias enfiado com a cara na vedação, olhos semi cerrados e a pensar com toda a sua força, até conseguir ver com toda a certeza as imaginações dos outros meninos.
Foi então que pensou imaginar brinquedos como os deles, para poder brincar no seu parque de verdade.
Cerrou os olhos e pensou. Nada. Cerrou com mais força e pensou ainda mais. Nada. Não se deixou vencer e fechou ainda mais os olhos e pensou ainda com mais firmeza. Mas não viu nada.
"Porque é que não consigo brincar com brinquedos de imaginar?" pensou com uma tremenda frustração.
Então realizou que, provavelmente, seria por não ter com quem imaginar.
...

sexta-feira, 4 de março de 2011

"Quem está livre, livre está..."

Fomos deixados ao acaso de nos entendermos, como ninguém nos escolheu vamos ficando juntos. Cuspidos pra fora da roda por estarmos um pouco a mais, por sermos um pouco de mais. E quando ninguém nos quis vimo-nos na obrigação de cuidarmos os calores do corpo que não se esquentam com tochas nem labaredas.

Todos sabemos que a abundância de escolha tolda a visão e estorva o pensamento, por isso temos a vida facilitada, pelo menos ate que alguém salte roda fora. Achas que alguém salta?


Há dias que não sei que língua falar contigo, dias em que o português não te chega aos ouvidos, que, por mais que tente tu percebes as coisas todas ao contrário. Há outros em que não suporto sequer o facto de me deixar pensar em ti, vou-te boicotando por entre fileiras de pensamentos em que me refugio, camuflado, e tapo os olhos a tudo o que me leve aí.


O pior é quando depois do casamento de ideias e valores queres saltar a cerca para o outro lado, só pra ver se já alguém tombou de cu durante aquela dança circular, para que o possas levantar e limpar-lhe os farrapos enquanto julgas recuperar a juventude que já lá vai. Mesmo que alguém tenha caído, julgas mesmo que vão querer olhar para o fantasma de uma vida? Nem que vistas os melhores cetins.



E agora, achas que já alguém saltou?

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Dia dos namorados

Queres namorar comigo?
Oh não, esta pergunta outra vez... para quê perguntar se já sabes a resposta?
Acredito na persistência, mas já agora porque não mesmo?
Já te disse, gosto demasiado de mim para namorar contigo.
E depois?
Depois se namorar contigo perco o interesse, ou anulo um dos dois, e não queremos isso pois não?
Se calhar não.
És demasiado importante para te perder e ainda agora comecei a gostar de ti, eu já te disse como é difícil apaixonar-me.
É.
Para alem do mais preciso de me soltar da outra, e sem que isso aconteça não me posso prender a mais ninguém, muito menos deixar que alguém se prenda a mim.
E se eu me quiser prender a ti?
Azar o teu, vais ter que te aguentar á minha impossibilidade...
Acho que posso com isso.
Eu acho que não podes, mas se quiseres tentar é a tua cabeça que fica no cepo. Dá-me tempo.
.
.
.
E agora, queres namorar comigo?

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Três divisões

Descendo os fios pintados do teu cabelo,
escorrem as palmas das mãos
que nem o licor que se amordaça
às paredes quentes da língua.

A fina ponta dos dedos
se te desenha na pele,
por cima dos traços do teu perfil,
um quadro invisível.

Na tela despem-se corpos
com as discórdias do pincel,
a carne nua solta nitrogénio em pó
fundido no céu.

No arrebitar dos seios
prendem-se verdades cuspidas,
escondidas da luz do dia,
esgravatadas na falta da noite.

O tímido abanar de ancas
mostra caminhos vedados a medo
que se abrem com palavras míticas,
e se fecham com o olhar.

Desce a água que se adivinha
no roçar das pernas
p'lo inicio do fim dos dedos
enquanto se descobrem nos lençóis
pés agrafados no colchão
depois de um trilho de sulcos.

Neles vais tu, eu sigo.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Eterno

É sempre tão efémero,

o tempo que te penteia os cabelos,
as tardes mortas no sofá,
a manta por cima do aquecedor
e o quente no fundo da pipa.

a mão quieta dentro do bolso
a agarrar no bilhete de metro,
e o caminho para tua casa
que passa por todas as linhas.

as faíscas no topo do eléctrico
no final da tarde fria,
o cachecol envolto ao pescoço
os solavancos frenéticos dos carris.

o sabor da pastilha nos dentes
antes de te beijar a boca,
e o formigueiro nas pernas
quando te vejo ao chegar.

o olhar que deitas sobre mim
quando os nossos corpos não se levantam,
e a tua voz do outro lado do telefone
que me deixa esvaída em sangue.

o sentir que posso sentir-te
eternamente dentro de mim,
e que, para tudo o que venha
estás de pedra e cal.

o hoje da chuva
o amanhã do sol,
e o nevoeiro dos entretantos
que toldam a visão algemada.

e é sempre tão eterno.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Tinta da China

É ao descer na tinta que envolve
o cetim doce da tua pele,
ao contornar os traços inacabados
com a ponta da língua,
que me sobe à cabeça
e à ponta dos dedos
a estatica força de te jogar
o corpo contra a parede.

De te prender as mãos
em volta do pescoço
e te rasgar os labios
com o afiado prazer
no gume dos dentes.

Com as unhas cravar-te
pedaços de carne,
no meio da seda áspera dos lençóis,
a retalhar-te pedaços do passado
enquanto os teus olhos dançam
dentro das órbitas em torno do sol.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Márcia

Hoje quero não gostar de ti, desligar aquele botão onde tropeçaste sem querer e acendeu a luz do quadro. Não ter que me preocupar se á noite a colcha não foge do teu corpo frágil de criança, ou se estas sozinha na cama. Quero não saber de ti, ou se pensas em mim com a mesma intensidade e constância. Quero fugir livre e nua pisando os fetos partidos no chão, sentir o frio das pedras a rasgar-me a sola dos pés enquanto tu estas longe daqui. Boicotar-te dentro de mim para que não saias ca pra fora, fechar a porta as tuas lamurias e birras feias que te toldam os olhos e te avemelham o nariz. Cortar-te a mão que me agarrou pela primeira vez por entre as pernas e me fez soar de prazer, e morder-te os dedos que entraram dentro de mim até conseguir sentir a minha boca vermelha. Hoje não quero ser tua, nem que tu te atrevas a telefonar-me com facas na língua. Hoje quero dormir ate fazer doer os olhos, e acordar num depois de amanha onde tu estas, quieta, pequena e nova pra mim. E quero que voltes a ser eu enquanto adormeci. Hoje quero não voltar a tropeçar no botão que apagou a luz e nos deixou ás avessas no escuro.