quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pequeno

A porta fecha-se atras de mim e nela ficam os gritos, estão a discutir outra vez, e infelizmente já sei onde vai acabar.
Quando era assim eu ficava no meu quarto, saltava pra cima da cama, enrolava-me nos lençóis lavados e esperava que o meu sono se adaptasse aos berros dele e dela. Nunca gostei de pessoas que falam algo, pensam que só por falar alto as outras as vão escutar melhor, compreender o que têm para "dizer". O cheiro do detergente que ela usa fazia-me lembrar de quando era mais pequeno, quando as discussões estavam a quilómetros de distância quando não serviam para me magoar, quando não eram por minha culpa, lembravam-me dos gelados de três sabores, chocolate, morango, limão. Na minha cama ninguém me podia fazer mal, era o meu forte, a minha prisão, o meu tanque de guerra, ninguém me podia tocar pois eu era Rei, os bonecos do cobertor o povo, a almofada o trono. Quando chegavam a casa cansados do trabalho mal se olhavam, mal se falavam, mal se tocavam, ela fazia o jantar, ordenava para que nos sentássemos e comecemos, ele arrumava o quarto e estendia a roupa e às vezes pedia-me para ir buscar a garrafa cheia em troca da vazia. Bebia três a quatro copos ao jantar, ela reparava e depois de uma observação ele começava a entregar-se aos discursos repletos de desprezo. Nunca gostei de pessoas que falam com tom de desprezo, dá-me vontade de lhes bater com a máxima força que os meus braços consigam ir buscar. Depois do jantar iam cada um para seu quarto, cada um para seu telefone e eu ficava para apanhar a loiça, falavam alto ao telefone, com voz de segredo mas alto, com risinhos de criança. Nunca percebi o que diziam, com quem falavam e porquê. Depois do telefone vinham os gritos, e era nessa altura em que já tinha arrumado a loiça toda dentro da maquina que voltava para o quarto. Não tinha irmãos, imaginava-os assim pequenos como eu, risonhos como eu. Desejava ter uma televisão para puder meter o som alto e não ouvir mais nada, desejava ter um radio para ouvir musica com uns fones, desejava mil e uma coisas que nunca acabaram por acontecer. Desejava mais que nunca dormir e acordar no passado.



(...passado insípido...)

Sem comentários:

Enviar um comentário